quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Pode ligar o motor pra eu dormir?

Quando nos mudamos para a minha atual casa, ela era cercado por dois terrenos baldios - um de cada lado. Um deles era coberto de ervas daninhas, mas as vezes meu pai passava um secante para que um atalho que levava a outra rua ficasse à vista dos passantes. Lembro de quando minha irmã caiu de bicicleta e da cicatriz que aquele atalho fez no seu joelho. Mas o outro lado é bem mais interessante. Era terra e era plano. Tempos depois resolveram construir e despejaram um monte de areia no meio do terreno. Não sei porque cargas d'água a construção demorou uns dois anos e o monte de areia continuou lá. Mas seja qual for o problema que o proprietário teve, não reclamaria se visse no que o monte de areia se transformou. Ganhei uma bicicleta em um Natal. Ela era maior que eu, e o monte de areia me ajudava a subir e a descer dela. Tinhamos vizinhos do outro lado do terreno. Um menino da minha idade e uma menina bem mais nova. O monte de areia se transformou em uma mistura de barro e água, que na nossa imaginação era uma linda praia. Escorregador, parque de diversões, túneis, cavernas. Uma vez meus pais saíram e eu, minha irmã e mais uma amiga fizemos uma guerra de mangueira com os vizinhos. Molhamos a casa toda. O menino atirava pedrinhas na minha janela e eu fingia que ficava braba. Um dia meu pai foi falar com o pai dele e ele nunca mais jogou as pedrinhas. O monte de areia era um motivo pra reconciliação que nunca tinha sido necessária. O monte de areia se transformou num supermercado e o menino morreu num acidente de carro. A menina cresceu e outro dia vi ela no circo, me disse um oi meio tímido - tenho certeza que ela ainda pensa no monte de areia, assim como eu. Demorei muito tempo pra dormir tranquila depois que o mercado foi construído. Os motores da camara fria fazem um barulho que só se percebe a noite, quando a escuridão engole a correrria da cidade. Ele funciona por 15 minutos e para por 5. Depois o ritual continua. Hoje eu me acostumei -  a gente se acostuma com tudo não é? Acostumei-me e passei a precisar dos seus sons para poder dormir. Depois de algum tempo é o silêncio quem tira o sono. Por que no silêncio, quando não há bichos do lado de fora, os que moram dentro começam a uivar. Assim concentro-me nos barulhos do motor, pra não lembrar da cantiga que as risadas do menino que morreu formavam atrás do monte de areia, mesmo que o barulho que mais queria ouvir seja o das pedrinhas na minha janela.

"E eu te deixo a própria sorte, o teu destino vai dizer o que é melhor, e agora perde a sua triste ilusão de achar que é tão ruim.''

Um comentário:

  1. senti tristeza pelo menino (R), mas gostei da história (real) da qual sou testemunha. Parabéns. Desejo que continue cada vez mais inspirada. Um grande beijo.

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